Amonet

Por: Daniel Vianna Hunziker
– Diga-me, Dr. Seixas: é caso para internação?!
O doutor Armínio Seixas deu um passo para fora da sua sala e encostou a porta atrás de si.
– Juiz Anório… agradeço vossa confiança. Sabe muito bem que não sou um especialista na área e…
– Vamos, homem, responda à minha pergunta!
– Gostaria que fosse mais simples. – sussurrou o médico no corredor branco e vazio. – Durante os vinte primeiros minutos, conversamos sobre atualidades, para que eu pudesse ter uma impressão geral e…
Doutor Seixas desviou o olhar, como se algo mais interessante se desenrolasse bem acima do ombro do magistrado. Diante da interrupção, Lindolfo Anório resmungou e viu-se obrigado a acompanhá-lo. Virou-se para trás e, pelo vidro da janela, observou um grupo de doze mulheres, paradas em frente ao hospital.
– Devem estar perdidas. – disse o juiz, mais exaltado do que antes. – Pois que se encontrem! Continuemos, por favor!
– Acho melhor nos sentarmos. – o médico arqueou as sobrancelhas e apontou para a sequência de cadeiras vazias junto à parede. – Sua esposa está preenchendo um questionário sob a supervisão do meu assistente, o que nos dá uns vinte minutos. Temo que não poderei ficar por mais tempo, parto para Goiânia no início da tarde.
O juiz acatou a sugestão, impaciente.
– Vossa esposa, à primeira vista, me parece sóbria. – continuou o médico, em tom moderado. – Por exemplo: sabe perfeitamente em que cidade vive e em que ano nos encontramos. Tratei de deixa-la à vontade, falamos sobre temas de sua preferência. Citou o nome do nosso prefeito algumas vezes, criticou a quantidade de vereadores que compõe a nossa Câmara e…
– Ótimo! Então já temos uma candidata! – Lindolfo Anório sorriu, embebecido em sarcasmo. – Luziânia que a aguarde no próximo ano porque, afinal, 1970 já bate à nossa porta! Bem, se neste ano colocamos o homem na Lua, tudo é possível, não é mesmo!? Ora, doutor, vamos ao que interessa: em algum momento de vosso bate-papo, minha esposa mencionou algo sobre o disco-voador e sobre a sua missão?
– Como!? – Dr. Seixas franziu o cenho.
– Disco-voador, doutor! Como nos filmes americanos…
O juiz Lindolfo Anório ergueu a mão direita e começou a movimentá-la de um lado para outro, silvando com a boca. Arrependeu-se do gesto, ao perceber a olhadela de uma enfermeira que passava por eles.
– Alienígenas, seres de outro planeta. – insistiu o juiz. – Por acaso nunca ouviu falar de Orson Welles?!
– Bem, ela mencionou um clarão…
– Isso! – confirmou juiz Anório. – É disso que eu estou falando! Este foi o marco-zero, doutor. O dia em que tudo saiu dos eixos, há oito dias…
O médico levou a mão ao queixo, pensativo.
– A Sra. Laurinda me disse que estava na parte de trás da casa, retirando algumas roupas do varal e…
O juiz anuiu com empolgação como se, agora, falassem a mesma língua.
– …e que, de repente, um vento suave sussurrou em seu ouvido, convidando-a para uma caminhada até o topo da colina. Chegando lá, com toda Luziânia sob os seus pés, avistou no horizonte um estranho clarão laranja-avermelhado no céu. No mesmo instante, foi tomada por uma enorme sensação de paz. Uma onda de lucidez, segundo ela. Disse-me que, a partir desse momento, tudo ficou claro…que sabia exatamente o que fazer. Ela fora convidada a mudar de vida, a renascer…
– Ela o enrolou, doutor! – disse o juiz Anório, seco.
– Bem, esta foi a sua descrição. – disse o médico, mordendo os lábios e forçando um sorriso. – Poderia acontecer com qualquer um de nós, não!? Minha profissão requer um certo ceticismo, juiz Anório, assim como a sua. Mas tal relato não é de todo incomum e algumas pessoas podem passar por momentos de epifania e…bem…somos humanos, não é mesmo?!
– Correto, doutor! E, nesta condição, também podemos ser facilmente enganados! – completou o magistrado, o dedo indicador em riste. – Uma versão conveniente dos fatos – é isto o que ela lhe apresentou! Uma que não a comprometa! A voz do alienígena, neste caso, tornou-se um “vento sussurrante” e a nave espacial, o próprio círculo solar e seu efeito mágico sobre o crepúsculo! Minha querida esposa, também por conveniência, deve ter se esquecido de mencionar que não passou a noite em casa. Quando retornou, na manhã seguinte, passou mais quatro horas em silêncio sentada no sofá da nossa sala, como se não me devesse qualquer satisfação! Olhava para o nada, com um sorriso idiota no rosto. Quando resolveu abrir a boca, disse apenas que eles a haviam escolhido.
– Eles?
– Os alienígenas, doutor!
O médico arregalou os olhos.
– Pois é! Laurinda, de repente, era a escolhida para revelar ao povo de Luziânia uma verdade maior. Pode imaginar como me senti? E antes tivesse ficado só nisso! – o juiz lançou um olhar perdido para o chão. – Aos poucos, passou a abandonar suas obrigações como esposa. Quando chegava em casa, nenhum jantar sobre a mesa. Amontoados e amontoados de roupas sujas sobre o cesto, de pratos e copos sobre a pia, de pó sobre os móveis. Nenhum beijo ou qualquer outra demonstração de afeto. Quando a questionei, disse que não atenderia mais pelo nome de Laurinda, mas Amonet. Disse que ainda era capaz de me amar, mas de uma forma diferente. Segundo ela, nossa união já havia proporcionado lições suficientes para ambos e que era hora de seguir em frente, cada um à sua maneira. Mas o pior ainda estava para acontecer…
O médico se remexeu na cadeira, enquanto o juiz de Luziânia pendulava entre a ira e um sôfrego nó na garganta.
– Estava no escritório, à meia-luz, analisando um dos meus casos mais complicados. Eram quatro e meia da manhã. Desnecessário dizer que toda aquela situação com Amo…, quer dizer, Laurinda, havia desregulado todo o meu sono. Percebi uma movimentação suave na sala, e eis que a vejo deixar nossa residência vestindo uma túnica branca, portando uma espécie de cajado na mão direita. Saí para fora de casa e pedi explicações, aos berros. Antes de descer a colina que nos separa da cidade, ela se volta para mim e diz: “Eis que parto para a minha missão. Nossa história termina aqui, meu amado Lindolfo. Meus desejos sinceros para que você um dia possa amar e ser amado de verdade por outra mulher. Adeus!”. Sem hesitar, aproximei-me e a segurei pelo braço.
O médico levou a mão fechada à boca e limpou a garganta. Sua mente, agora, secretava uma delicada associação de imagens, amplificando as manchas roxas e (até minutos antes) discretas, que havia detectado no braço direito e no pescoço da paciente. Conteve o desconforto, enquanto o semblante do magistrado escoava em sua direção, deixando o prumo da cadeira como um rio lodoso, pronto para afoga-lo juntamente com suas ousadas especulações. Encolheu-se.
– “Você não vai a lugar nenhum, mulher! Não neste estado e não deste jeito!”, eu disse com uma energia extra, confesso. E eis, doutor, que ela se dirige a mim exibindo o seu rosto, mas não os seus olhos: em questão de segundos, eles me cercaram e, em meio ao silêncio, me sentenciaram. – Lindolfo Anório deixou sair a primeira lágrima. – Ela não reagiu. Apenas pediu que eu me afastasse…e eu obedeci, como se todas as minhas forças tivessem se exaurido. Já não era o juiz de Luziânia, mas um réu qualquer, sem rumo e, a partir daquele momento, sem esposa. Tive que deixa-la partir.
– Eu entendo, juiz Anório. Mas, da forma como os fatos se apresentam a mim – ponderou o médico-, volto a recomendar-lhe cautela. Parece-me, até o momento, que estou diante de uma grave crise conjugal, acompanhada de uma história mal explicada, uma súbita mudança de comportamento e… – o médico voltou a limpar a garganta -…ao que tudo indica, de uma mudança voluntária de nome. Seja como for, farei…
– Até onde sei, eu sou o juiz aqui e não o senhor, meu caro doutor! – Lindolfo Anório cerrou o punho e desferiu-o contra o próprio joelho. – Suas idas e vindas de nossa cidade praticamente fazem do senhor um forasteiro! Por acaso não sabe que sou vítima de burburinhos pelos quatro cantos desta cidade e que estou à beira de um vexame público!? Laurinda tem feito discursos nas praças, em frente à Igreja Matriz, em frente à Prefeitura, no pátio da fábrica de refrigerantes e só Deus sabe aonde mais! Padre Martinho, o prefeito Ozires e o Sr. Dorival Lacerda já me enquadraram, pedindo uma solução. As doze lá fora, por exemplo. – o juiz apontou com o polegar, sobre as próprias costas. – Laurinda as enfeitiçou com as suas palavras! Estão seguindo-a há vinte e quatro horas ininterruptas! Me diga uma coisa, doutor: como pode a minha querida esposa – a quem resgatei dos confins do Goiás, praticamente sem teto e sem escolaridade – tornar-se uma oradora profissional da noite para o dia!? Vi, a contragosto, um dos seus discursos porque tive medo que me reconhecessem na plateia – o que acabou acontecendo. “Aquela não é a tua esposa, meritíssimo?”, perguntaram. Eu neguei, por três vezes. Disse que era alguém muito parecido com ela, talvez uma parente distante. Acabei me afastando, envergonhado, mas já havia escutado o suficiente: Laurinda exigia salários e direitos iguais para as mulheres na fábrica, representatividade das mulheres na Câmara dos Vereadores, abertura de uma Delegacia Especial para Mulheres no centro de Luziânia….disse que nossa cidade estava prestes a testemunhar uma revolução que só viria a ganhar corpo em nosso país algumas décadas adiante. – o magistrado deu uma gargalhada, seguida de uma expressão de desgosto. – Pelo menos, foi com estas palavras que minha esposa profetizou.
– Entendo. Mesmo assim, juiz Anório, – o doutor tomou fôlego para continuar, desejando escolher bem as palavras – entendo que casos de carisma exacerbado e discursos eloquentes – principalmente os que podem afetar a ordem pública ou o bem-estar da população – sejam um caso para a polícia e não para a medicina.
– Quero-a de volta! – gritou o juiz Lindolfo Anório, aos prantos. Levou as mãos ao rosto, apoiando sua cabeça sobre o ombro do médico. – Quero a minha Laurinda de volta! Oh, meu Deus! Minha antiga Laurinda, como era doce, como me respeitava…
– Acalme-se juiz Anório! Por favor! – disse o médico, sinalizando que estava tudo sob controle aos que passavam pelo corredor.
– Doutor Seixas, somos amigo de longa data. – disse o juiz, tentando se recompor. – Preciso da sua ajuda! Dê-me ao menos uma esperança, um nome que seja… o senhor mesmo reconhece que não é um especialista em transtornos psíquicos.
O médico pousou o olhar sobre a janela por alguns segundos. Seria preferível colocar um ponto final na conversa, mas o desespero e a amargura do magistrado – com quem completava naquele ano quinze anos de uma conveniente amizade – fizeram-no optar por um meio-termo.
– Há uma clínica em Goiânia, juiz Anório. Um amigo meu a conduz. Não seria de todo mal submeter Laurinda a alguns exames. Aguarde aqui por um instante, vou anotar os seus contatos.
O médico se levantou e retornou à sua sala. No outro extremo do cômodo, abriu a gaveta da sua mesa e pensou duas, três vezes antes de consultar sua agenda telefônica. Pegou um bloco de notas, e copiou duas sequências de números: uma para o psiquiatra e outra para a clínica. Antes de destacar a folhinha, decidiu abrir a porta da sala em anexo, para verificar a quantas andava o questionário da Sra. Laurinda Anório. Abriu-a e encontrou seu assistente em pé, encarando uma mesa e um assento vazio.
– Ela estava aqui agorinha! – o homem tremia da cabeça aos pés, o café transbordava da caneca recém-completada. – Como…como ela escapou?!
O médico retornou às pressas para o corredor.
– Laurinda não está na sala. Ela não passou por nós, disso tenho certeza.
O juiz se levantou, enfurecido.
– Como assim, perderam a minha mulher?! Francamente, Dr. Seixas, eu deveria…
– Ali está ela. – apontou o assistente. – Lá fora, com aquelas mulheres!
Os três homens encararam a janela, boquiabertos.
– Maldita!
Quando se virou para o lado, o médico viu o magistrado sair em disparada. Girou a cabeça na direção do seu assistente, cobrando-lhe a sua versão da história.
– Ela estava ali, quietinha, preenchendo o papel na minha frente, com a única coisa que tinha nas mãos: uma caneta bic azul! Levantei-me e fui até a garrafa térmica sobre a mesinha de canto. Quando me virei…puf(!)…ela tinha desaparecido!
– Receio que não deveríamos ter estendido a consulta. – disse o Doutor Seixas, ignorando o aspecto sobrenatural do relato. – Fui envolvido em um caso de desentendimento conjugal e, ao que me parece, Lindolfo…bem, ele está claramente fora de si. Talvez o mais correto fosse…
Lindolfo Anório então surgiu, do outro lado do vidro, gritando disparates em direção à esposa e as mulheres que a cercavam no estacionamento.
– Você vem comigo para casa! – o juiz se aproximou da esposa e a tomou pelo braço – Agora!
Os pés de Laurinda pareciam raízes fincadas no chão e, com o semblante inalterado, a mulher observava as caras e bocas do marido, que tentava arrancá-la dali a qualquer custo. Lindolfo, em desespero, deu-lhe um tapa na face. Laurinda não se mexeu, mantendo uma espantosa serenidade. O magistrado não se deu por vencido e se dependurou na esposa, usando todo o peso do seu corpo para vergá-la.
– Vá chamar um segurança! Rápido! – disse o Doutor Seixas para o assistente.
Vendo-se sozinho no corredor, o médico voltou a olhar para fora: as doze mulheres, até então meras espectadoras dos abusos cometidos pelo juiz, deram-se as mãos e formaram um círculo em torno do casal. Juiz Anório, indiferente, continuava a puxar e a repuxar a esposa. Uma das mulheres iniciou um cântico em voz alta, e deu a ignição para que as demais começassem a movimentar seus corpos, como salamandras envoltas em chamas. Lindolfo Anório abandonou o braço de Laurinda, mas não por intimidação diante do cerco dos doze corpos trepidantes: o que parecia ser uma nuvem densa e acelerada começava a tapar o sol e, em questão de segundos, todo o pátio do estacionamento foi envolto em uma penumbra – em pleno meio-dia.
Dr. Seixas prensou o rosto contra a janela, mas não conseguiu identificar o que se passava lá no alto. O que quer que fosse, devia estar a centenas de metros de altura. E, então, quando voltou a atenção para o magistrado, aconteceu: a luz! Uma luz azul intensa, que recobriu a cabeça e o corpo do magistrado, a ponto de esmaga-lo contra o chão.
– O quê…meu Deus!
O médico agachou-se diante da janela. Quando voltou a olhar para o estacionamento, a claridade já havia retornado ao pátio: nenhum sinal da penumbra…e do magistrado!
Do outro lado do vidro, as mulheres formaram uma fila indiana e iniciaram uma marcha em direção à rua. Pareciam flutuar sobre o chão e rapidamente dobraram a esquina. Quando já não podia mais avistá-las, eis que seu assistente e o segurança do hospital surgem na cena do crime. Confusos, olharam em sua direção. O assistente ergueu os dois braços, pedindo-lhe uma explicação, supondo que o chefe havia assistido a tudo de camarote.
Atordoado, Doutor Seixas correu para a sua sala e girou a chave. Pegou um copo de plástico e encheu-o até a boca. Bebeu de um só gole: se contasse apenas a metade do que seus olhos haviam testemunhado, já se veria em grandes apuros!
Alguém bateu à sua porta e Doutor Seixas enxugou o rosto com a manga do seu avental.
– Juiz Anório! – o médico segurou na maçaneta da porta para evitar um desmaio.
– Doutor Seixas…eu lhe devo desculpas. – disse o homem com uma voz aveludada. – Acho que me excedi. Talvez seja melhor que eu e Laurinda nos afastemos, pelo menos por um tempo. Para o nosso próprio bem, entende?!
O homem deu-lhe as costas e começou a caminhar pelo corredor, enquanto na outra direção, o assistente e o segurança retornavam às pressas.
– Adeus, Dr. Seixas! Muito obrigado, meu amigo! – disse o homem, o som da sua voz ecoando pelo corredor branco e vazio do hospital.
– O que aconteceu com a Sra. Laurinda? – perguntou o assistente, com a cabeça inquieta. – Como o juiz Anório veio parar aqui tão depressa?
Doutor Seixas mordeu os lábios e esticou as bochechas.
– Dê-me apenas uns minutinhos, sim?!
O médico voltou a se trancar em sua sala. O assistente ainda bateu na sua porta por duas vezes, perguntando se estava tudo bem, mas logo desistiu.
Dr. Seixas caminhou até a sua mesa. No bloco de anotações, a folhinha com as duas sequências numéricas permanecia intocada. Os telefones da clínica e do psiquiatra…esqueceu-se de repassá-los ao magistrado! Ao lado do bloco, duas folhas grampeadas chamaram a sua atenção: o questionário recém-preenchido pela paciente! Procurou pelo campo “nome” e lá estava: Amonet! Dobrou-o e o depositou no bolso do seu avental. Voltou à folha do bloquinho. Destacou-a e encarou a sequência de números até que os algarismos começassem a pulsar sobre a folha branca. Rapidamente, tratou de amassá-la. E, com alívio, arremessou-a para o fundo do cesto de lixo!
“Aquilo que chamamos de caos e loucura no dia de hoje, poderá muito bem se tornar a ordem e lucidez no dia de amanhã.”, Autor Desconhecido