As duas ilhas – Daniel Vianna

Temos a sensação de que, quando uma ilha se for, sempre poderemos escapar para uma outra. E depois para outra. Até entendermos de que se trata apenas de uma única ilha.
Em uma remota parte do mundo, banhadas por mares pouco navegados, duas ilhas – gêmeas, solitárias e paradisíacas – encaravam-se frente a frente, unidas somente por um estreito de banco de areia que, por uma confluência de correntes e outros fatores, nunca se desfazia.
Ao redor das ilhas, águas cristalinas e uma vida marítima intensa, abundante. Na borda, uma horda de coqueiros defendia os seus interiores, de um verde pujante, vascularizados por rios e cachoeiras intermitentes. E assim, a monotonia seguia saudável e firme, em seu próprio ritmo, nas ilhas do “Oeste” e do “Leste”.
Naquela tarde de sol escaldante, se um helicóptero sobrevoasse a Ilha do Oeste, decerto notaria um minúsculo e curioso ponto em uma de suas exuberantes praias. Deitado de bruços, descansando de sua pesca matinal, jazia o jovem Tollus, o único habitante e guardião das duas ilhas.
Tollus não sabia como havia parado ali. Sabia apenas que tinha se virado da melhor maneira para permanecer vivo. Quebrar cocos, “varar” peixes com o seu dardo improvisado, cortar árvores para algumas de suas construções. Todas aquelas atividades preenchiam seu tempo de maneira satisfatória. Tratava de manter distância da ilha do “Leste”, visto que da última vez que tentara caminhar pelo banco de areia, quase fora devorado por um enorme tubarão branco. Não havia necessidade, no fim das contas; afinal, sua própria ilha tinha de tudo. Ele cuidava dela e ela, dele.
Ao se levantar do seu cochilo naquela tarde, Tollus forçou um pouco o olhar, protegendo a vista do sol intenso, que teimava em não desaparecer em meio às nuvens, e teve a impressão de ter visto um vulto, um pequeno ponto escuro se movendo na Ilha do “Leste”. Aquilo o intrigou profundamente. Em determinado momento, quando o ponto parou de se mexer, Tollus teve a impressão de que o vulto também o observava à distância. Assustado, resolveu recolher os peixinhos que havia pescado, envoltos em folhas, e migrar para o outro lado da ilha ainda naquela tarde. Teria mais algumas horas de luz para fazer a travessia e enfrentar a mata fechada, que àquela altura não o assustava: conhecia os atalhos de cor e em pouco mais de uma hora já estaria com a sua fogueira acesa e com os peixes prontos para serem assados!
Não houve maiores problemas durante o trajeto. E assim, ao chegar à praia do extremo oposto da ilha, pôs-se a preparar o seu banquete. Sentou-se na areia e acendeu a fogueira, juntando alguns gravetos que havia recolhido durante o caminho. Estava animado: os peixes do outro lado da ilha eram bem maiores e saborosos. Devorou-os. E, deitando-se na areia, fitou o céu, estrelado como nunca. Um enorme sentimento de contentamento invadiu-lhe a alma. Sua vida era boa, muito boa. Pensou que nada havia lhe faltado e nunca faltaria. Abundância, para sempre.
Tão logo fechara os olhos e um sonho começou a ser reproduzido em seu inconsciente. Homens, como ele, chegavam remando em enormes “pranchas” (como costumava se referir às embarcações). Havia visto, em raras ocasiões, algumas delas atravessarem o horizonte, a alguns quilômetros da praia. Mas em seu sonho, elas chegavam bem perto. Tão perto que podia ouvir as conversas e risadas dos homens. Não tinha ideia de como reagiria. Não se lembrava de como era interagir com outro ser humano. Foram tantos anos vivendo ali, solitário. Sentiu que agora os homens se aproximavam dele. Estavam prestes a tocá-lo.
E então acordou, assustado.
Para sua surpresa, eles estavam, de fato, bem ali – como no sonho! Estavam em pé, observando-o a uma distância segura. Assustaram-se quando viram que o selvagem, em um piscar de olhos, colocou-se de pé e os ameaçou com o seu bastão de madeira, pronto para o ataque!
Os homens, intrigados com a criatura, levantaram os braços. Tentaram se comunicar com Tollus através de alguns gestos. O selvagem só conseguia retribuir através de grunhidos. Com um assobio, mantendo os braços erguidos, o capitão da embarcação mandou trazer frutas e pão para Tollus, tentando improvisar um gesto de paz. De imediato, alguns homens da tripulação cercaram Tollus e o desarmaram, tomando o devido cuidado para não machucá-lo. Montaram uma mesa ali mesmo na praia e Tollus, sem entender o que se passava, teve o seu primeiro desjejum com o capitão. Ao mesmo tempo, notava dezenas de pequenas embarcações que chegavam sem parar em sua praia, partindo de um enorme Transatlântico, ancorado a poucas centenas de metros adiante. Turistas começaram a se aglomerar na areia. Percebendo a confusão do selvagem, o capitão começou a fazer gestos, na tentativa de se comunicar com ele. Tollus não lhe deu atenção. Estava mais interessado naquela comida, que despertava um prazer que ele nunca havia sentido!
Mais tarde naquele dia, levaram Tollus para conhecer o Transatlântico. Trataram de cobrir suas vergonhas, vestindo-o com uma bermuda floral, uma camiseta polo e um chapéu panamá: não soubessem a sua origem, passaria tranquilamente por um dos turistas da embarcação. Apreensivo no início, Tollus maravilhou-se com o Transatlântico: cinco andares, shopping, discoteca, piscina. Sempre acompanhado do capitão e seus homens. ele grunhia e acenava para o demais passageiros, animado. Estes retribuíam, sem qualquer sinal de estranhamento, julgando que se tratava de alguém com um grave problema na fala.
Tollus foi encaminhado até os seus aposentos: uma suíte duplex, no quinto andar do Transatlântico. Como não entendia o conceito de cama e travesseiro, necessitou de um dos homens do capitão caminhar em direção ao leito e simular um cochilo. O selvagem logo entendeu do que se tratava. Poucos minutos depois, dormia pela primeira vez sob um teto maciço, sem a companhia das amigas brilhantes.
A noite passou rápido. Na manhã seguinte, trataram de levar o café da manhã em seu quarto, e na sequência, o capitão veio oferecer-lhe uma carona de bote até a praia. O Transatlântico estava de partida. Ao deixar-lhe são e salvo na areia, o capitão despediu-se dele com um aceno. Tollus grunhiu calmamente, como que agradecendo a cordialidade. E viu o bote afastar-se, levando aquele homem de traje e quepe brancos para além do horizonte. Curiosamente, o selvagem notou que um grande grupo de pessoas havia permanecido na ilha.
Os novos habitantes da ilha saudaram Tollus e ofereceram-lhe alguns presentes, como um gesto de agradecimento pela sua hospitalidade: relógios, roupas, eletrônicos. Tollus acenava com a cabeça e grunhia. Como retribuição, fez uma fogueira para os seus convidados.
Na manhã seguinte, um barulho de retroescavadeira irrompia o ar. Tollus acordou, assustado. Nenhum convidado seu estava mais ali. A alguns metros de distância, enormes embarcações traziam guindastes, caminhões, tratores. Algo estava acontecendo ali. Algo além da sua compreensão. Um homem de capacete aproximou-se de Tollus e pediu que se afastasse dali, por medida de segurança. O selvagem não entendeu, mas mesmo assim deu meia volta e foi procurar um lugar mais sossegado.
Tollus foi morar no outro lado da ilha. Passaram-se alguns meses até que os mais novos moradores da ilha o importunassem novamente. Vieram busca-lo de jipe: uma estrada agora cortava a ilha de fora a fora. Tollus vibrou com o veículo- era a primeira vez que andava de jipe na vida! Quem estava dirigindo era o gerente do novo resort cinco estrelas que haviam construído na ilha. Tollus não reconhecia mais o caminho pelo qual tantas vezes havia passado: árvores cortadas, diversos tipos de jardim no lugar da mata fechada, animais em cativeiro. Tudo estava diferente, mas ainda belo e divertido, assim como a sensação do vento que tangenciava a sua face e deixava os seus longos cabelos irrequietos. E assim, Tollos conheceu intuitivamente os conceitos da velocidade e da aceleração.
O gerente levou-o para conhecer o resort. Era ainda mais impressionante que o Transatlântico! Piscinas a perder de vista (algumas com ondinhas!), tobogãs, um mini-zoológico, bebidas à vontade! Tollus grunhiu, animado! O gerente fez questão de encaminhá-lo à suíte dez estrelas do resort, localizada no último andar, aonde poderia desfrutar da mais bela vista da ilha.
O gerente veio acordá-lo pela manhã. Havia um engenheiro na ilha, louco para conhecê-lo. Queria levá-lo para conhecer a nova plataforma de petróleo, localizada a dois quilômetros da costa. E assim, Tollus o acompanhou, vestindo o traje apropriado para a visita. Tollus ficou maravilhado com aquela estrutura. Não acreditava que aquilo havia sido construído por seres humanos. O engenheiro fez questão de tirar uma selfie com o selvagem, ambos mostrando as mãos sujas do líquido viscoso e escuro. “É para os meus filhos! Eles não vão acreditar!” – vibrava o homem. Tollus não entendia muito bem a situação, mas dava o seu já automático sorrisinho, seguido de um grunhido padrão.
No retorno à ilha, Tollus não deixou de perceber a enorme quantidade de peixes mortos, boiando durante quase todo o trajeto. Mas aquilo não chegou a incomodá-lo, pois certamente ainda havia muitos vivendo tranquilamente ao redor das ilhas. Chegando à praia, notou um aglomerado de pessoas, se acotovelando por algum motivo que ainda não estava claro. Chegando um pouco mais perto, percebeu que quatro homens carregavam um golfinho acima de suas cabeças. As pessoas se aproximavam e tiravam fotos, sem parar. O gerente do resort, ao ver a sua chegada, gritou para os homens. Sem graça, devolveram o animal, cambaleante, ao oceano. O gerente aproximou-se de Tollus e ensaiou fazer um gesto de desculpas. Tollus grunhiu, desta vez em tom de desânimo. Percebeu que já não reconhecia mais o lugar.
Cabisbaixo, dirigiu-se à suíte. O gerente, percebendo a tristeza do selvagem, permitiu que usasse a suíte por tempo indeterminado. E por ali o selvagem ficou. Dias viraram meses. Meses viraram anos. O selvagem raramente saía do quarto. Quando se arriscava, algo apertava o seu peito. A praia estava sempre cheia. Barcos indo e voltando, sem parar. Pessoas transitando pelos corredores do resort. Em poucos minutos, ficava transtornado. Foi então que, no meio de uma noite de insônia, o selvagem sentiu um forte estrondo. Ouviu gritos vindos de fora do quarto. Abriu a janela. Lá longe, quase no limite do horizonte, a plataforma de petróleo (ou “ilha de metal”, como a visualizava), ardia em chamas. Embarcações partiam dela, em disparada, e ancoravam próximo à praia. Dezenas, centenas de pessoas foram chegando e se aglomerando na praia. Muitas delas, sem vida.
Na manhã seguinte, na praia, Tollus percebeu o tamanho da tragédia. O mar estava escuro. Coberto mesmo pelo líquido viscoso com o qual sujara as mãos, meses atrás. Boiando, próximo à areia, jaziam golfinhos, peixes e até uma baleia.
Pessoas choravam.
O gerente, tentando acalmar os seus hóspedes, levantou o seu megafone e avisou que já havia contatado o continente. Em breve, chegaria o resgate. Tollus percebeu que de nada adiantaria ficar por ali: a Ilha do Oeste estava morta.
Só restava-lhe uma saída: migrar para a Ilha do Leste e recomeçar a sua vida por lá.
Diante daquele emaranhado de hóspedes em pânico, o selvagem disfarçou e deu meia-volta, certificando-se de que ninguém o seguiria. Tomou o caminho da estrada asfaltada, para ganhar tempo. Em poucos minutos, atingiu o outro extremo da ilha.
Tomou coragem e começou a andar em direção à água, tentando localizar o banco de areia. A profundidade foi aumentando – e nada de localizar o banco! Memórias do tubarão branco começaram a assombrá-lo.
Foi então que notou, ao observar a Ilha do Leste, conseguiu distinguir claramente: um homem deitado, aparentemente dormindo, estava para ser importunado por um grupo de quatro, que se aproximavam dele, sorrateiramente. E então Tollus virou o rosto, para a sua ruína. À esquerda da ilha do Leste, uma visão que lhe era familiar: um enorme Transatlântico, no horizonte, todo imponente, mantinha-se estático, apesar do mar agitado. Tollus se debatia, ora lutando pela vida, grunhindo e agitando os braços em direção à ilha, tentando chamar a atenção dos homens, ora se contorcendo de raiva, quando seus olhos fitavam a imponente embarcação. A água já chegava em seu queixo. Percebeu, então, que o destino era inevitável. E implacável. Assim como a sua sensação de impotência.
E o banco de areia, que sempre havia estado ali (a poucos metros do cambaleante Tollus), por uma confluência de correntes e outros fatores, se desfez…
“O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.”
Eclesiastes 1:9