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6 de abril de 2016

O Circo das Mil Caras – Daniel Vianna

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Às vezes uma simples atração de circo pode revelar mais do que desejamos saber….

Nada fazia com que o garoto se mexesse.

Hipnotizado pela pintura diante dele, um pouco acima de sua cabeça, os pais o aguardavam na porta da galeria, que já estava fechando. Seriam os últimos a sair. Já sem graça, tentaram chama-lo pela terceira vez.

Sem sucesso.

Um senhor muito bem vestido, trajando um terno bem cortado, com direito a um lenço branco no bolso do paletó e apoiando-se em uma bengala dourada, entrou na sala e se aproximou da “estátua mirim”.  Tentou conseguir o mínimo de sua atenção:

– Fascinante, não?! Lembro bem da minha sensação ao terminar este quadro, há quarenta anos. Poucos o entendem. – e viu que o garoto continuava na mesma, sem piscar os olhos. Com um leve sorriso, colocou a mão em seu ombro e continuou: – Meu jovem, eu deixaria que ficasse mais um pouco, mas nosso tempo acabou… – o menino então se virou e deparou-se  com um senhor de setenta e poucos anos, com um olhar arregalado e hipnotizante, ostentando um tipo de bigode que não era muito comum de se ver. “Duas antenas de barata”, pensou. Curioso quanto àquela estranha figura que sabotara o seu transe, o menino assentiu com a cabeça e, decepcionado, pôs-se a caminhar em direção à saída. Não passou pela porta sem antes ouvir um sussurro do velho, dirigido somente para ele: “Amanhã, neste mesmo horário! Tenho uma surpresa reservada para você!”.

O menino olhou para trás, mas o velho não estava mais ali. Seus pais, impacientes, já estavam do lado de fora da galeria. “Mas o que deu em você, hein?!”, reclamou o pai. “Estamos atrasados já!”. Colocou a mão no bolso e separou as entradas para o teatro. Todo sábado era assim: visitas a museus, galerias e teatros. Seu pai fazia questão de manter essa programação: “Cultura é importante, meu filho! Muito importante!” – não se cansava de dizer. O menino, por outro lado, não ligava muito. Preferia mesmo era passar o sábado brincando com os meninos da mesma idade. De alguma forma, entretanto, após aquela visita à galeria, sentia que algo havia mudado naquele sábado.

No domingo pela manhã, resolveu voltar à galeria. Desta vez, sozinho.

O velho o aguardava na porta, como se soubesse o horário exato da sua chegada. Segurava um gato com um dos braços e com o outro, abriu a porta para o menino. Naquela manhã, não portava a sua bengala dourada, um objeto que talvez não fosse tão necessário assim.  Tanto que, na sequência, agachou-se sem maiores dificuldades e recolheu o seu jornal, estirado sobre o capacho já há algumas horas. Antes de virar-se para o menino, empunhou a publicação e se deparou com uma dica de final de semana, inserida discretamente no rodapé:

“Circo das Mil Caras, atração internacional, chega à cidade na próxima semana.” – leu em voz alta, como que querendo que o menino o escutasse. E, em silêncio, concluiu: “O mundo anda em círculos…ou circos – e deu um sorriso com o seu inusitado jogo de palavras.

Voltou-se para dentro e viu que o menino o aguardava de pé. Apressou-se para oferecer-lhe uma cadeira, a única daquela sessão da galeria. “Aguarde aqui, que eu já volto!” – e se dirigiu para os fundos. Em menos de um minuto, voltou com um cavalete envolto por um pano escuro e o colocou bem em frente ao menino, que julgou estar diante da surpresa prometida pelo velho no dia anterior. “Depois de ontem, por algum motivo, voltei a trabalhar neste aqui, depois de todos estes anos. Foi um dos meus primeiros.” – e, na sequência, retirou o pano.

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O quadro parecia mais real que as suas outras obras. O menino viu um circo e seu público. “Há mais, muito mais neste quadro, do que seus olhos podem enxergar.”provocou o velho. “E talvez você mereça ouvir toda a história, se meus instintos não me falham.” – e arregalou os olhos, de propósito, para intimidar o jovem, que estava ansioso para saber quando receberia a tão aguardada surpresa. “Sim, eu mereço!” – apressou-se o jovem, sem falsa modéstia, louco para ouvir o que aquele senhor tinha para contar. Em pé, e andando de um lado para o outro, com os braços para trás, o velho começou o seu relato:

“Há cerca de sessenta anos, se bem me recordo, quando eu tinha mais ou menos a sua idade, um Circo misterioso montou as suas tendas nos arredores desta cidade. Misterioso porque a sua chegada não fora anunciada. E também porque uma de suas atrações gerou muita polêmica na época: o Salão de Espelhos.”

O velho caprichou na entonação e aproveitou para fazer uma pausa. Precisava criar um clima de suspense. Estava se divertindo com o seu papel de contador de histórias! Continuou:

“O dono do circo fazia questão de cuidar pessoalmente desta atração. Um enorme cartaz, logo na entrada, anunciava que somente crianças e jovens poderiam entrar – e sem a companhia dos pais! A propaganda anunciava: “Uma vez saindo do outro lado do salão, você nunca mais será o mesmo!”. Muitos pais proibiram seus filhos de entrar e alguns, inclusive, tentaram fechar a atração. Os relatos que se ouviam, de fato, não eram dos melhores: crianças sendo retiradas à força e aos berros, não querendo sair de lá. Outras, pelo contrário, saindo às pressas, trazendo uma expressão de terror em suas faces.

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Curioso, me dirigi ao local sem avisar os meus pais em uma manhã de domingo (assim como esta..), na companhia de dois amigos. Resolvemos encarar o temido Salão juntos. Coincidência ou não, éramos os únicos visitantes do circo naquela manhã. Pensamos, a princípio, que estava fechado. Mas não estava. Uma fina neblina cobria o local naquela manhã. Uma estranha calma pairava no ar. Na bilheteria do circo, um cartaz anunciava a entrada franca aos domingos. “Um bom sinal!”, pensamos.

Sem hesitar, fomos direto ao Salão de Espelhos. O dono do circo estava próximo à atração, conversando com um anão. De repente, parou a conversa e notou a nossa aproximação: “Bom dia, jovens! O que querem por aqui?!” – seu tom era intimidador. Mas logo percebemos que fazia parte do seu papel. “Queremos conhecer o Salão de Espelhos! Está funcionando?!” – eu me adiantei, percebendo que os meus amigos já estavam “tremendo na base”. “Mas é claro que está! O Salão de Espelhos sempre está funcionando. Mas a pergunta correta seria: será que vocês estão funcionando para encarar o Salão de Espelhos?!”. Os jovens entreolharam-se, confusos. O dono do circo soltou uma sonora risada. “Desculpe-me pela piada! Venham por aqui!” – e os dirigiu até a entrada da atração, não sem antes encorajá-los: “Respirem fundo antes de entrar. Lembrem-se: o objetivo aí dentro é localizar o único espelho verdadeiro! Aguardo vocês na saída – isto é – se vocês conseguirem sair de fato!” – e novamente soltou uma sinistra gargalhada.

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E assim, com os nervos à flor da pele e depois das “amistosas” recomendações do dono do circo, entramos no Salão. Meus amigos pensaram em desistir, mas eu não deixei. O que de mau poderia acontecer ali, em um inofensivo salão de espelhos, não é mesmo?! Tomei a dianteira, já que os dois pareciam estar congelados. Com passos curtos, chegamos à primeira sessão. Quinhentos espelhos dispostos do chão até meia altura nos cercavam. Percebi que teríamos um enorme trabalho pela frente.

Comecei a olhar atentamente os espelhos. Um deles me deixava mais magro, outro mais bonito, outro com rosto de galã de cinema. O nosso medo, em poucos minutos, desapareceu – o lugar era, de fato, divertido. Quanto mais tempo eu passava olhando aqueles espelhos, mais elaboradas se tornavam as imagens. Paisagens paradisíacas e cores que a minha retina nunca havia capturado se fundiam com o reflexo do meu corpo. Não demorei muito para perceber que o objetivo daquela sessão era apenas nos distrair com imagens bonitas. O verdadeiro espelho não estava ali. Notei que meus amigos estavam entretidos com tudo aquilo. Cheguei para o primeiro e falei: “Vamos! Já cansei desta sala. Não vamos encontrar o verdadeiro espelho por aqui!”. Ele concordou. Cutucamos o outro, que parecia não nos escutar. Estava hipnotizado: havia um sorriso interminável em seu rosto. “Ei! Já estamos indo! Você não quer nos acompanhar?!”. Ele respondeu, sem qualquer mudança de expressão: “Acho que vou ficar mais um pouquinho! Está divertido por aqui! Podem ir, já alcanço vocês…”.

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Resolvemos seguir adiante, em dois mesmo. Mal sabíamos o que nos aguardava no próximo salão….

Desta vez, dois mil espelhos, de diversos formatos e tamanhos cercavam todo o ambiente, inclusive alguns estavam espalhados pelo chão. Estava escuro, muito escuro. Mas, mesmo assim, eu conseguia enxergar o meu reflexo. A princípio, vi meu rosto e meu corpo refletidos sem maiores alterações. Em poucos segundos, porém, as mudanças começaram: meu rosto empalideceu, a minha pele foi ficando transparente, o meu crânio, exposto! Uma mulher de branco, flutuando, surgiu da escuridão,  bem atrás de mim! E, cortando o ambiente – um grito seco de horror!!

Quando me virei, percebi que já não havia mais ninguém ali comigo: o meu outro amigo havia acabado de desertar.

Me segurei para não acompanha-lo e pôr tudo a perder.

E fiz de tudo para não me deixar dominar por aquela sensação…

Continuei a procura: espelho a espelho. Cada um mais assustador que o outro. Em um, eu virava um zumbi, no outro, uma caveira, e em um terceiro, mulheres de vestido branco me carregavam rumo ao meu funeral. Quanto mais exagerada a imagem, mais eu percebia que tudo não passava de um simples jogo. Era tudo muito repetitivo. Não foi difícil chegar à conclusão…

“Não, não…tem algo de errado aqui…o verdadeiro espelho não está nesta sala. Esta sala só nos serve para botar os visitantes em retirada e fazê-los desistir do objetivo final…

Cansado de perder o meu tempo, decidi passar para a terceira sala. Foi quando, ao caminhar pelo corredor que supostamente deveria me dirigir até ela, dei de cara com uma porta fechada, com algo pendurado nela, envolto por um pano vermelho.

Não me contive e o retirei de imediato. Deparei-me com uma moldura, envolvendo um espelho todo empoeirado e sujo, com algumas palavras traçadas em sua superfície:

“Quebre o espelho e ganhe a LIBERDADE!”

Não pensei duas vezes e obedeci à mensagem.

Havia um martelo no chão, convenientemente deixado para a resolução da charada e, em uma tentativa, o espelho se partiu. Atrás dele, uma pequena abertura escondia uma pequena chave dourada. Não tive dificuldades para destrancar a porta. Ao abri-la, as luzes da manhã voltaram a iluminar o meu rosto. Ouvi palmas e um grito de saudação: diante de mim, surgia o dono do circo. E atrás dele, todo o seu pessoal: mágicos, palhaços, a mulher gorila, cinco anões e até um elefante – todos vieram me saudar.

“Parabéns, meu jovem! Estávamos quase perdendo as esperanças! Você descobriu a verdade!” – o dono do circo não conseguia se conter.

Meio tonto e confuso, pude ouvi-lo anunciar o prêmio pela façanha: “Um dia inteiro de espetáculos só para você, meu jovem! Escolha a atração e será atendido!”

Foi assim que aconteceu. Foi assim que sobrevivi ao temido Salão de Espelhos e tive o domingo mais incrível de toda a minha vida!”

– Mas, e seus amigos?! O que aconteceu com eles?? – o menino, impressionado com o relato, queria mais explicações sobre o desfecho da história.

O velho deu uma risada.

O primeiro, coitado, teve que ser retirado à força. Chegou a ficar horas na mesma posição, seduzido pelas imagens refletidas nos espelhos. O dono do circo resolveu intervir, antes que seus pais chamassem a polícia. O segundo, como já te contei, saiu correndo. E, talvez por vergonha, jamais voltou a falar comigo. O destino nos afastou. Uma pena! – e, cabisbaixo, continuou: – O fato é que, só depois de muitos anos fui entender o que havia se passado ali: o Salão não era sobre os espelhos, sobre o prêmio, sobre o dono do circo, sobre imagens bonitas ou horripilantes…era sobre nós mesmos!

O garoto inclinou-se interessado. O velho continuou:

– O verdadeiro espelho não estava dentro daquele salão, mas na cena que encontrei do lado de fora dele. Ela ainda está cravada na minha memória. Com o passar do tempo, eu mesmo percebi que acabei me tornando alegre e lunático como aqueles palhaços, imprevisível e encantador como aqueles mágicos, assustador e anti-social como a mulher gorila e pequeno diante da monstruosidade do mundo como aqueles anões. Todos eles acabaram por se tornar o meu “verdadeiro reflexo”. E tudo isto está, de alguma forma, refletido aqui! – e, estendendo a mão, apontou para os seus quadros. E concluiu:

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– Por isso, meu jovem, cuidado. Muito cuidado com os falsos espelhos! Ou eles vão te seduzir e atrasar a sua vida ou vão te assustar a tal ponto de te paralisar ou fugir dos desafios! A realidade se encontra em algum ponto entre o incrivelmente belo e o terrivelmente  assustador, não é mesmo?! Ah, e antes que eu me esqueça, este quadro agora é seu, assim como isto aqui.

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O velho, então, tirou um bilhetinho amassado e o entregou ao garoto.

–  Vale uma entrada para o “Circo das Mil Caras”, o garoto leu em voz alta. “Mas não é esse o…” – e a sua pergunta foi interrompida de forma abrupta pelo senhor:

– Sim! É isso mesmo! Me parece que você já tem um programa para o próximo final de semana! E não deixe, é claro, de visitar a sua atração mais famosa! – e abriu um sorriso.

– Obrigado, senhor…! Qual é mesmo o seu nome? – levantou-se e aproximou-se do quadro, pronto para leva-lo para casa.

Salvador, meu pequeno amigo … Salvador.

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“Um dia terá que ser admitido oficialmente que o que batizamos de realidade é uma ilusão até maior do que o mundo dos sonhos.”

“O palhaço não sou eu, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e tão ingenuamente inconsciente que joga ao jogo da seriedade para melhor esconder a loucura.” 

Salvador Dali (1904 – 1989)

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