Close

19 de outubro de 2016

Os Caçadores do Significado Perdido – Daniel Vianna

apresentacao1

Quando desistimos de buscar o significado da nossa existência, damos força a um inimigo invisível e assustador…

Os maiores de trinta e anos com certeza se recordam do “NADA”, o inusitado e abstrato vilão de “A História sem Fim” (1984), de Wolfgang Petersen, um filme infantil baseado em livro homônimo do alemão Michael Ende, que marcou época pelos seus simbolismos, criatividade e sensibilidade.

Apenas para recordar, o “NADA” se trata de uma força destrutiva, que se utiliza de Gmork, um lobo gigante e assustador, para pôr abaixo o reino de Fantasia, um território de criaturas fantásticas, heróis e princesas. Acontece que – e este é o elemento mais genial da narrativa – a história se desenrola em três planos. O plano do mundo fantástico em si, onde a maioria da ação se desenrola, o plano de Bastian, um menino comum que vive em Nova York e que luta para se recuperar da morte da mãe, além de sofrer com o bullying dos colegas e o nosso – isso mesmo, o nosso plano: o mundo de Fantasia que testemunhamos nada mais é do que o fruto da imaginação de Bastian – e, por tabela, também da nossa – estimulada pelo livro que o garoto devora de uma só vez.

A diferença é que, a certa altura da aventura, o livro o convoca para participar ativamente da história, colocando-o em uma espécie de provação e para isto ele deve ter convicção da existência do mundo fantástico que criou em sua mente. A nós, meros espectadores, é feito o mesmo convite, embora de modo bem sutil, uma vez que nos é revelado, através de Gmork, o verdadeiro propósito do vilão que não se pode ver nem tocar:

“O NADA é o vazio total, o mais absoluto desespero e seu propósito é destruir o reino de Fantasia, onde cada criatura reflete os sonhos e anseios de cada ser humano” e conclui de forma assustadora “pois pessoas sem esperança são mais fáceis de serem controladas!”

wolf

                                                       Gmork

Bem avançado para um filme infantil, não?!

Outra interpretação, também nada inocente, seria a de que o “NADA” representaria o estado depressivo do menino. A história, então, poderia ser visualizada como uma batalha de Bastian contra o seu vazio existencial (ou “NADA”), amplificado pela recente perda da mãe, a indiferença do pai e a perseguição dos colegas. Ao refugiar-se no Reino de Fantasia por algumas horas, através da leitura do livro, ele atribui um novo significado a todo o seu drama pessoal. Ao buscar o seu herói interior (através da sua identificação com o personagem principal da história,  Atreyu), é capaz de enfrentar os seus piores medos e, ao final da aventura, é premiado com uma nova personalidade, mais confiante e  capaz de alçar voos mais altos – literalmente!

O “NADA”, sem sombra de dúvida, pode ser considerado um dos maiores, senão o maior, vilão do homem moderno. O mais aterrorizador é que ele é invisível, chega despercebido e drena a alma humana aos poucos.  

Os excessos de praticidade e racionalismo, a destruição de rituais e a superficialidade dos relacionamentos são as suas ferramentas prediletas. Uma vez fortalecido, é capaz de minar qualquer sentido na vida cotidiana, massacrada pela rotina e distrações fugazes. Os nossos sonhos são, então, destruídos aos poucos e viramos refém das bestialidades, tal como citado no discurso de Gmork.

Mas haveria algum meio de se defender do NADA?!

Sim. Tendo em mente que o “lugar comum” é o seu refúgio predileto, para escaparmos de suas forças malévolas precisaremos, acima de tudo, de muita coragem, disciplina e, acima de tudo, a capacidade de sonhar. Este último elemento acaba sendo o mais importante, pois retroalimenta os dois primeiros e forja o significado da vida.

Significado da vida?! Do que você está falando?!

Os discípulos do “NADA” ficariam orgulhosos com a sua pergunta! Você com certeza corrobora todo o esforço que eles vêm fazendo!

O temível "NADA"

                                                          O “NADA”

A verdade é que inúmeros cientistas, filósofos, artistas e religiosos se dedicaram de corpo e alma a esta busca. Alguns enlouqueceram ou desistiram pelo caminho, é verdade. A busca é perigosa e foi fartamente retratada em contos, lendas e mitos. Uma das mais famosas se refere à busca pelo Santo Graal, narrada na história do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, onde os mais famosos cavaleiros da Bretanha se colocam à disposição do Rei para enfrentar os maiores perigos da Terra, com o objetivo de retornar com o cálice utilizado por Cristo na última Ceia. Este representava a verdade última ou, no mais profundo, o próprio significado da vida. Quem bebesse dele, viveria para sempre.

É muito triste constatar que o homem moderno esqueceu-se desta busca. Tratou-a como algo místico demais e indigna do seu tempo, já escasso. Enterrou-a no calabouço da sua alma, trancafiando-a a sete chaves. Ou, pior ainda, exige que alguém destranque este calabouço para ele, terceirizando a sua própria aventura. Quando isto acontece, é muito fácil distrair-se com o movimento do oceano e com o canto das sereias (desafios encarados por Ulisses, em “A Odisseia”, de Homero), os quais, no mundo moderno, manifestam-se através das inúmeras seduções a que somos submetidos no dia-a-dia. Estas seduções nos alienam da realidade maior e, como revelou Gmork, nos tornam presas fáceis e sujeitas à manipulação.

A grande maioria das pessoas não se arrisca na busca do seu próprio “elixir”. Desejam recebê-lo em casa, via “DELIVERY”.  Querem usufruir do grande prêmio de antemão, sem correr riscos.

Afinal, é muito mais fácil caçar Pokemons, do que desbravar o mundo em busca do Graal, não ?!

Acontece que, para pular de fase, as coisas não são tão simples assim – e para o nosso próprio bem.

Assim como o menino Bastian, devemos estar dispostos e abertos para a nossa aventura particular. Inevitavelmente, o “NADA” surgirá bem à nossa frente, trazendo à superfície a nossa pior parte: medos, compulsões, neuroses e fraquezas. Podemos, inclusive, compreender o “NADA” como hiato (ou intervalo) que divide o antigo “eu”, corroído pelos vícios e impulsos, do novo. Religiosos e místicos se referem a este estágio de “Deserto” ou “Vale das Sombras”, repleta de tentações e vozes chamando-nos à desistência. Por outro lado, é impossível receber o prêmio se não resistirmos até o final. Se pularmos fora antes da hora, permitiremos que os grilhões retornem aos nossos pés e estaremos negando a liberdade a que temos direito.

Você disse liberdade?! Toda esta luta é para chegarmos até ela?! – você pergunta, desconfiado.

Sim. É este o prêmio: o ponto de chegada é o retorno à sua essência, onde jugos e amarras não existem, porque você tem a total consciência de si mesmo.

Precisamos enfrentar dragões, demônios, recorrer a aliados e pular dezenas de obstáculos, tudo isto apenas para perceber a nossa própria grandeza.

Irônico, não?!

Mas é somente chegando ao seu núcleo que o ser humano pode viver sem cascas sobressalentes e diferenciar-se perante os demais. Somente oferecendo algo que lhe é intrínseco, único e verdadeiro é que o ser humano se apercebe da sua finalidade neste planeta e da sua verdadeira razão de existir.

Alguns o chamam “propósito”: algo que só você tem a oferecer, que não consegue ser replicado por outros seres humanos, muito menos por máquinas e robôs.

E este, caro leitor, é  o ÚNICO JEITO possível de afastar o “NADA” de uma vez por todas!

symbol

O símbolo do Ouroboros, presente na capa do livro da “História Sem Fim”. Remete à ideia de ressurreição, recomeço e retorno à origem.

 

======================================================

Referências:

Como inspiração para o texto acima, utilizei-me do livro “A Jornada do Escritor”, de Christopher Vogler (ed. Aleph), que transporta para o mundo dos roteiros e livros a estrutura mítica da Jornada do Herói, idealizada por Joseph Campbell (1904 – 1987). Campbell é  autor de “O Herói de Mil Faces” (1949) e uma das maiores autoridades em mitologia e religião comparada do século passado.

Utilizei-me também do filme mencionado no texto –  “A História sem Fim” (1984), de Wolfgang Petersen. Recomendo, mesmo aos que já o assistiram, uma “releitura” da película, agora- assim espero – sob uma nova perspectiva!

 

Comentários

comments

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *