Sobre comida enlatada

No filme “O Show de Truman” (1998), Jim Carrey interpreta Truman Burbank, o primeiro ser humano adotado por uma grande corporação. O objetivo do conglomerado de comunicação é torná-lo astro do maior “reality show” já concebido para a televisão.
Desde a gestação, as câmeras não dão trégua a Truman: todos os momentos marcantes de sua vida, incluindo traumas de infância, encontros românticos e conversas íntimas são compartilhados com uma legião de fãs, que nem por decreto ousam desligar a televisão.
Depois de três décadas no ar, “O Show de Truman”, assim como qualquer programa bem-sucedido, tem produtores experientes, grandes anunciantes e um público engajado. Mas nele existe um importante diferencial: o próprio Truman. Ele é a única pessoa de verdade, em torno da qual orbitam milhares de personagens fictícios, incluindo sua própria mãe, a esposa e o melhor amigo.
O criador do programa, Christof (interpretado por Ed Harris) gosta de dizer aos seus críticos que a vida de Truman é motivo de alegria e esperança para milhões de lares ao redor mundo. Como um deus daquele mundo fictício, Christof (cuja grafia, curiosamente, difere da do Filho de Deus por apenas uma letra) manipula todos os aspectos da personalidade de Truman, e não se importa de colocá-lo diante de situações que envolvem medo, dúvida e hesitação. O principal foco de Christof é minar a vontade e a coragem de Truman, impedindo-o de deixar o mundo conhecido. Porque, se Truman ousasse demais, isso poderia significar o fim do programa.
Entretanto, por mais que Christof se esforçasse para mantê-lo confortável e a salvo, Truman nunca deixou de sonhar com viagens ao redor do planeta ou de se inquietar com o sentido da própria existência.
Uma sucessão de falhas técnicas e de segurança, comuns em qualquer programa televisivo, começam a suscitar a desconfiança em Truman. Ele começa a perceber os padrões repetitivos, as falas decoradas e a existência de fundos falsos; nota a artificialidade com que todos se dirigem a ele, como se proferissem falas decoradas e não estivessem realmente interessados em escutá-lo. De repente, a certeza e segurança de sua realidade “perfeita” é estilhaçada – não por fatores externos, mas pelo seu próprio esgotamento interior. Truman, em algum momento, enjoou do gosto da comida enlatada que lhe era fornecida todos os dias, por aqueles que diziam se importar com ele.
Assim como Truman, é certo que, em algum ponto da nossa vida, também vamos enjoar do gosto de comida enlatada. Uma comida que nos é fornecida pelos poderosos “Christofs” deste mundo, que comandam este planeta como se fosse o seu “reality show” particular e dizem se importar com a nossa qualidade de vida, saúde, segurança e bem-estar. Embora muito competentes no discurso, no fundo, não têm nada a oferecer, a não ser egoísmo e sede de poder. Do outro lado do cenário, não hesitam em nos manipular como se fôssemos seus marionetes, brincam com as nossas emoções e agem como se tudo fosse previsível e passível de ser controlado.
Nossa melhor resposta não é responder na mesma medida, mas ousar ser “de verdade”. Em um mundo aonde ainda reinam a mentira, a ilusão, o medo e a dúvida, aproveitemos cada segundo que as “falhas técnicas” podem nos oferecer. Quem sabe em alguma delas poderemos encontrar – assim como Truman – uma chance de despertar?
(Daniel Vianna Hunziker)