Versos de um naufrágio

(Daniel Vianna Hunziker)
A liberdade costuma vir vestida de trapos; porém, mesmo assim, é muito bela, mais bela do que todas as moedas de ouro e prata.
– Amado Nervo
Não sabemos todos os detalhes desta história passada no final do século XIX. Tudo o que sabemos se deve aos registros recuperados de William Prescott. O resto das lacunas foi preenchido com ajuda de uma testemunha, tomando os devidos cuidados para que a memória dos falecidos não fosse desrespeitada.
William era um oficial da marinha britânica, e cuja habilidade de escrita logo o tornou responsável pelos diários de bordo do HMS Rover.
Embora seu estilo fosse muitas vezes criticado pelo Comandante Pond, que se irritava com seus devaneios, o próprio homem reconhecia que, ao final de um longo dia (ou noite, levando em conta que os ataques de piratas, tempestades e ondas gigantescas não escolhiam hora ou local para darem o ar da graça), não havia nada melhor para distraí-lo do que folhear algumas páginas do diário do jovem. De alguma forma, aqueles escritos tinham o poder de remover o peso da responsabilidade das suas costas, flertando mais com o escapismo do que com um relato sóbrio e objetivo da realidade.
No início daquela noite de Primavera, véspera de Páscoa, o HMS Rover deslizava suavemente sobre o céu estrelado do Mar do Norte. A bem-vinda calmaria, a um dia apenas de seu destino, lhe permitira conceder uma hora de descanso a toda a tripulação, fatigada depois de 40 dias e 40 noites em alto mar. O vento estava frio, mas não gelado, de forma o Comandante Pond não se incomodou em fazer a sua leitura ao ar livre, na companhia da sua lamparina de óleo.
A monotonia daquele dia não parecia ter intimidado o punho inquieto do oficial Prescott, que havia adicionado dez páginas ao registro. Quem sabe, talvez, seu subordinado tivesse pulado para alguma outra embarcação mais interessante do que aquela e retornado a bordo, sem que ninguém percebesse? Pond, então, se lembrou de como o jovem,horas antes, parecia desconcertado, e tentava tapar a boca enquanto localizava o caderno em meio à sua bagunça. O motivo, agora, parecia claro: boa parte do relato era expresso através caligrafia sinuosa e errática, com direito a pequenas manchas nas folhas. As duas primeiras páginas forneciam uma detalhada descrição de uma ilha montanhosa, o que chamou a atenção do Comandante, pois ele não se recordava de ter se deparado com o local durante a longa viagem:
“(..) depois de desviarmos nosso bote de algumas pedras e de uma extensa formação de corais, chegamos na estreita faixa de areia, espremida contra o oceano por uma falésia com mais de 300 pés de altura. Nos aproximamos dos dois homens com cautela porque, a princípio, eles não pareciam aliviados em nos ver. Pelo contrário, estavam trêmulos e assustados. Próximo a eles, havia duas sequências de pedras que formavam uma cruz sobre a areia.
Embora a cena nos inquietasse, concluímos que as perguntas podiam esperar porque, além de famintos, aqueles homens pareciam estar em choque. Trouxemos eles a bordo, para uma refeição decente, seguida de um chá quente. O modo grosseiro, as vestes rasgadas e encardidas pouco revelavam quem de fato eram à primeira vista – e poderíamos estar lidando tanto com uma dupla de simples pescadores como com astutos corsários fazendo-se passar por pobres coitados. Estávamos ansiosos para saber quem eram, o que estavam fazendo ali e o que significavam aquelas pedras sobre a areia. Quando o primeiro deles decidiu abrir a boca, não foi para nos agradecer pela hospitalidade:
– O tesouro! – disse, com um sobressalto, exalando um hálito cujo aroma não valeria a pena descrever por aqui. Repetiu: – Nosso tesouro! Não podemos partir sem ele!
A partir daquele momento, é claro que tudo ficou mais interessante. Afinal, agora havia um tesouro! O homem fitou o seu companheiro e piscou algumas vezes antes de continuar. Segundo ele, o tesouro permanecia são e salvo, escondido em uma das cavernas da ilha, cuja entrada era tão estreita que facilmente poderia ser confundida com as irregularidades do paredão de rocha. Ficamos ansiosos e começamos a pressioná-los. Ora, se sabiam onde o tesouro estava, por que não estavam com ele? E quanto ao crucifixo de pedras? Então o homem, ainda inseguro, viu-se obrigado a admitir a existência de um terceiro indivíduo. O pobre sujeito havia despencado de uma altura de quatro metros, pouco antes de apontar a câmara aonde o tesouro se encontrava. Eles desceram pelo paredão o mais rápido que puderam. Ao se aproximarem, contudo, tiveram a impressão de que não havia uma só parte intacta naquele corpo estatelado sobre a superfície rochosa e gelada da caverna. E deve ter sido apenas um milagre que o homem ainda foi capaz de balbuciar suas últimas palavras, com olhos lacrimejantes e um fio de sangue escorrendo pela boca:
Uma vez na escuridão, preste bem atenção:
contente-se com o brilho do ouro e encontrarás a salvação!
Porque o mar, outrora calmo,
diante da tentação agora se agita;
e os viajantes, em desespero, tentam a sua sorte.
Não há mais refúgio lá fora, somente confusão e morte.
Um enigma? Talvez. Mas o homem pareceu não dar importância àquelas palavras e seguiu com o seu relato…
Na câmara apontada pelo moribundo, o objeto, simples e sem adornos, parecia estar à espera deles: um enorme baú de madeira livre de correntes ou cadeados, era iluminado por um tênue fio de luz que trespassava as rochas. Os dois avançaram com pressa, a mesma pressa dos sedentos que perambulam pelo deserto e, de repente, avistam um oásis. Era preciso, antes de mais nada, a confirmação de que aquilo não se tratava de uma ilusão. Passaram um bom tempo alisando a superfície da madeira e, ao abrirem a tampa, não conseguiram mais conter os sorrisos e o êxtase, primeiro mergulhando as mãos trêmulas nas moedas de ouro e depois acariciando as joias, cálices e os tantos outros sortimentos de inestimável valor que se abarrotavam até a tampa. Depois de passarem algumas boas horas admirando o achado, eles constataram que havia um pequeno problema, um problema muito lógico e óbvio, cuja sedação do momento havia lhes impedido de exercer adequada ponderação: os dois, sozinhos, jamais conseguiriam arrastar o objeto para fora dali. Precisavam de mais sete, talvez oito homens, no mínimo…
Ainda mais tensos do que quando adentraram a caverna, retornaram pelo mesmo caminho. Passaram pelo guia moribundo, escalaram a parede de pedra, percorrendo o mesmo corredor escuro, já não tão impressionados pelos seus duzentos metros de paredes estreitas, estalactites, colônias de morcegos, sussurros e estalos. De volta à claridade, os olhos ainda nublados e confusos, varreram o horizonte em busca da sua embarcação. Aguardaram mais um pouco, até que a vista se recuperasse. E, então, varreram de novo: o mar e o céu azul, em sua indiferença, recusavam-se a dedurar a direção que o bando de covardes havia tomado. Então, amaldiçoaram, um a um, e em especial seu capitão, que deveria ter ficado ali ancorado até que retornassem com o prêmio. Em meio a lágrimas de desespero, não pouparam nem mesmo o guia que, além de negligente com a própria vida, havia insistido em ser acompanhado por apenas dois homens, sem qualquer menção ao peso do baú.
A eles, pobres miseráveis, restava apenas a boa fé do destino.
E este mesmo destino lhes fora generoso, como o próprio homem admitiu, porque permaneceram firmes ali por doze dias e meio até a nossa chegada. Neste meio tempo, retornaram ao interior da caverna algumas vezes, para se protegerem da chuva, beberem água de um poço que ali brotava e para resgatarem o corpo do guia. Afinal, não poderiam simplesmente deixá-lo apodrecer lá dentro. Haviam conseguido pescar dois ou três peixes de bom tamanho, mas não sem que as pedras e corais lhes presenteassem com alguns cortes e cicatrizes.
O homem, mais uma vez, foi invadido por uma súbita agitação:
– O tesouro! Não podemos partir sem ele! – repetiu ele, para quase metade da tripulação do HMS Rover, que acompanhava o interrogatório. Entre eles, se encontrava Charles Saunders, o Vice-Comandante.”
Pond interrompeu a leitura. Enquanto coçava a barba grisalha, recordou-se da febre que o deixara acamado por dois dias, logo na primeira semana de viagem. Charlie havia, de fato, assumido seu posto neste período. Um período tão curto que não daria tempo para que isso tudo…enfim, a imaginação de Prescott, de fato, merecia crédito! Retornou para o diário, pulando dois ou três parágrafos:
“(…)Os homens se exaltaram, e muitos eram tão jovens que mal podiam esperar para fazerem parte de um enredo como aquele. O Vice-Comandante julgou que uma rápida aventura, à moda das histórias de piratas, não faria mal aos rapazes. E que mal faria recuperar objetos de valor histórico para, depois, encaminhá-los a algum museu? Ou mesmo como recompensa aos garotos por uma campanha bem-sucedida? Quanto aos dois estranhos, o Vice-Comandante foi categórico: não poderia aceitar mais duas cabeças a bordo do seu navio em pleno início de temporada. O comandante Pond certamente o recriminaria por isso quando se recuperasse da enfermidade. Além de não inspirarem confiança, seriam mais duas bocas para alimentar durante vários dias…
Pond sentiu um mal-estar ao ler o próprio nome. Havia um limite claro entre imaginação e irresponsabilidade e, quando terminasse a leitura, trataria de arranjar uma punição à altura para o oficial Prescott por distorcer fatos verídicos, misturando-os às suas alucinações…
“O Vice-Comandante Saunders, então, propôs o seguinte: cederia dez dos seus homens para recuperar o baú e, terminada a tarefa, cederia um dos três botes do HMS Rover aos maltrapilhos. A aventura não deveria durar mais do que quatro horas. Caso o tempo fosse ultrapassado, deveriam retornar a bordo.
– E como faremos com a divisão!? – perguntou o mais calado da dupla, num lampejo de indignação.
O Vice-Comandante propôs que considerassem a capacidade do bote: podiam escolher entre mantimentos para quatro dias ou a sua parte do tesouro. A julgar pelas suas aparências, pareceu bastante óbvio que os dois zelariam, primeiro, por seus estômagos…”
O comandante pulou mais duas páginas do relato, até chegar ao último parágrafo…
“Somente hoje, é verdade, depois de seguidas doses de vinho e rum, é que tomei coragem para relatar o dia mais memorável desta embarcação, 18 de Março de 1895, apesar das seguidas ameaças do Vice-Comandante Saunders (…)”
Pond estremeceu ao fazer as contas, retornando ao início do diário. A escrita do jovem oficial já não lhe parecia tão atraente assim. Examinou a sequência de relatos de Prescott, ao mesmo tempo em que xingava sua prolixidade e desorganização em voz alta: o oficial parecia fazer questão de embaralhar as datas, colocando-as ora no cabeçalho, ora no rodapé e ora em lugar nenhum, e não estava claro se havia ou não um intervalo entre os dias 17 e 19. Ainda praguejando contra os relatos, Pond correu pelo convés, embora já tivesse confirmado, de longe, que não havia mais do que dois botes de madeira, fixados pelo emaranhado de cordas. Perguntava-se como podia ter sido tão cego e estúpido durante todos aqueles dias, quando toda a mentira, ganância e a desfaçatez de sua tripulação – especialmente as de seu Vice-Comandante -, encontravam-se bem diante dos seus olhos. Retornou ao diário de Prescott:
“… tenho a impressão de que o Capitão Pond ficará muito feliz ao saber da surpresa de última hora, quando finalmente atracarmos em Portsville. Posso antecipar as manchetes nos jornais: “HMS Rover localiza tesouro perdido”. Sim, tenho certeza de que ele ficará enfurecido no início, mas logo se esquecerá de tudo depois de ver sua cara estampada no jornal, depois de conceder algumas entrevistas.”)
Pond praguejou mais uma vez, agora contra toda a sua tripulação. Concluiu que não os conhecia, que não passavam de pilantras e mentirosos e, por um instante, pôde ver seus rostos deformando-se em meio à espuma de água, que se revolvia contra o casco. Parecia que havia passado os quarenta dias completamente sozinho no HMS Rover, porque estar na companhia daqueles homens e nada eram a mesma coisa. Na manhã seguinte, eles iriam se ver com ele. Ah, sim! Dirigiria a eles um extenso sermão sobre honra e lealdade! Pond, então, notou um objeto redondo e diminuto no chão do convés, próximo ao local dos botes. Ao aproximar a lamparina, foi agraciado por um brilho dourado e pela prova que precisava para desmascarar aqueles que se diziam “seus homens”. Mas não faria isso sem antes usufruir de uma boa noite de sono, em meio à calmaria. Colocou o objeto no bolso e seguiu em direção aos seus aposentos, ansioso pela desforra da manhã seguinte.
Neste ponto, interrompemos o nosso relato. Qualquer acréscimo de palavras seria mera especulação. Como havia dito no início, desconhecemos a totalidade desta história passada no final do século XIX. Mas sabemos, sim, do incêndio que devorou o HMS Rover na noite de 12 de Abril de 1895, e de dois curiosos objetos resgatados juntamente com os vinte e oito corpos na praia de Dorset.
Segundo Paul Fisk, um dos doze marinheiros sobreviventes, e única testemunha dos últimos eventos que se passaram a bordo do HMS Rover, tanto a pequena caixa de cerâmica como a lamparina de óleo pertenciam ao Capitão Pond. E, se não fosse pelas informações que mais tarde extraiu do diário do oficial Prescott (milagrosamente preservado no interior caixa de cerâmica), Fisk não hesitaria em apontá-lo como o responsável pela tragédia: da ponte da embarcação, pôde escutá-lo resmungando e perambulando de um lado para o outro no convés. Mas depois concluiu que seria uma tremenda injustiça incriminar um homem por deixar sua lamparina acesa no meio da noite, logo após saber de uma traição.
Graças à boa vontade do oficial Paul Fisk e dos escritos de William Prescott, a biografia do Capitão Lawrence Pond permanece irrepreensível, com direito a um pequeno memorial em sua cidade natal. E, ainda nos dias de hoje, algumas vilas próximas à Portsville ainda se alimentam de lendas sobre os fantasmas do HMS Rover: muitos pescadores são unânimes em dizer que, durante as breves aparições, eles ostentam muitas joias e anéis para disfarçarem os corpos incinerados e se esquecerem da terrível tragédia que ceifou suas vidas.
Se a morte predomina na bravura
Do bronze, pedra, terra e imenso mar, (…)
Podem vencer do tempo a tirania?
Onde ocultar – meditação atroz –
O ouro que o Tempo quer em sua arca?
– William Shakespeare, em Soneto LXV
(*) Todos os personagens e eventos descritos nesta história são ficcionais. Qualquer semelhança com eventos históricos do passado constitui mera coincidência.